O homem caminhava lentamente rumo ao navio ancorado no cais do porto ao norte. Ele cantarolava enquanto mantinha as mãos seguras nos bolsos do seu traje de marinheiro, cheio de dinheiro naquele momento.
- Lucros nos negócios novamente. O capitão ficará satisfeito.
A embarcação ergueu-se diante de si. Era grande com três pavimentos e capacidade para 150 pessoas. Seu casco era alto e volumoso, por isso resistia a longas viagens, às tempestades e aos ataques.
Embarcou.
- Capitão? Mas o que...
O velho Genovês fez sinal para o outro se calar. Indicou com a cabeça a cabine abaixo do tombadilho. Ciente daqueles gestos, o marinheiro seguiu Genovês para dentro da cabine.
- O que houve? O senhor está indo a algum lugar? - Perguntou, ao perceber que o velho carregava nas costas uma mochila de viagem.
Genovês encarou seu subordinado por alguns segundos e depois suspirou.
- Sente-se, meu filho.
E se sentou na cadeira atrás de uma escrivaninha. O outro o imitou, sentando em um banquinho de três pernas.
- Eu ia deixar esta carta para você e Ariel. - Disse o velho, pegando um envelope em cima da pequena mesa. - Não esperava encontrá-lo aqui tão cedo. Pensei que tinha embarcado na Corveta e só voltava hoje à noite.
- Pois é. Encontramos com outra nau comercial na metade do caminho para Amatsu. Foi coincidência, mas acabamos que fizemos o negócio no mar.
- Hum... - Fez Genovês, cabisbaixo.
- Mas é... Para onde o senhor estava indo? Não me lembro de ter me avisado sobre alguma outra viagem.
O capitão do Deviace voltou a encará-lo. Parecia estar escolhendo bem as palavras, antes de pronunciá-las.
- Coonell, desde que eu te encontrei todo estropiado no cais, minha vida melhorou. E muito. A sua ajuda eficiente foi lucrativa para mim, para você e, infelizmente, para o governo.
- Não estou entendendo aonde o senhor quer chegar com essa história.
Genovês deixou escapar mais um suspiro e se levantou da sua cadeira. Caminhou até Coonell ainda sentado e estendeu o envelope lacrado. Ele o pegou.
- Deixa eu te pedir uma última coisa, filho. - Disse o velho, com a mão no ombro de Coonell. - Não cometa os mesmos erros que eu. E cuide bem da Ariel.
Coonell mirou durante alguns minutos a porta por onde seu capitão havia saído. Estava sozinho dentro da cabine dele agora.
Abriu o envelope endereçado para ele e começou a ler.
Querido Coonell,
Quando encontrar esta carta, provavelmente eu estarei cruzando a fronteira do continente. Sabe que se fosse pelo serviço das Kafras, eu já estaria muito mais longe. Mas, sabe também que eu sempre odiei o serviço delas. Coisa de gente preguiçosa que não descobriu o prazer de uma longa caminhada saudável.
Bom, eu estou muito velho, você sabe. E o pior é que nunca chegou a me ver nos meus dias de glória, visto que nos encontramos há poucos meses atrás. Meu filho, você foi uma benção para mim e para minha filha. Somos imensamente gratos por você fazer parte da nossa vida. E mesmo não sabendo nada sobre o seu passado, você me mostrou ser uma pessoa de excelente caráter e coração. Apesar das suas maluquices nos ter colocado em sérios apuros, de vez em quando, você me deu esperança.
Eu te contei a história da minha família. Tive dois filhos com a mesma mulher. Um belo dia, eu acordo e ela não está ao meu lado. Checo o quarto do meu filho mais velho. Vazio. Corro para o berço da minha pequena e a encontro, dormindo serena.
Ao contrário do que eu estou fazendo com você e Ariel, minha mulher e meu filho não deixaram carta alguma. Até hoje, quando penso o que pode tê-la levado embora com meu filho, me vem uma angustia muito grande. Isso aconteceu há quase dez anos e só hoje eu decidi fazer alguma coisa a respeito.
Estou indo embora para procurá-los. Peço que me perdoe e entenda os meus motivos. Amo muito minha filha, mas ela merece mais do que ficar andando pelo reino junto com seu velho pai gago a procura de parentes que ela aprendeu a esquecer. Por isso peço a sua ajuda. Cuide bem dela, proteja-a. É muito nova para entender, então tente amenizar e ampará-la nos momentos que a saudade bater demais. É isso o que eu farei todas as noites, todos os dias. Estarei pensando nela e orando para que ela não sinta ódio de mim. Não sei quanto tempo a minha viagem vai levar. Mas tenha certeza de que eu voltarei para casa.
E agora você, meu rapaz. Não fique muito surpreso, mas conversei com alguns companheiros e eles me deram uma má notícia. O Deviace, apesar de ser meu, trabalha para o reino nas rotas comerciais com as ilhas do leste. Estou passando ele para o seu nome, você encontrará o certificado de posse na gaveta da escrivaninha. Basta assinar. Até aí tudo bem, agora que as dificuldades recomeçam a aparecer. Como eu fui o primeiro comandante deste navio, são as minhas assinaturas quem valem a autenticação para o governo.
Eu poderia perfeitamente ter deixado uma carta para os superiores da marinha, nomeando-o o novo capitão do Deviace. Mas só eu sei que, se fizesse isso, se soubessem que uma das naus mais velozes destes mares está sem seu legítimo dono, tentariam tomá-lo de você alegando falta de capacitação e de patente, visto que você não fez o teste para a marinha.
A partir daí, sua vida e a de minha filha se tornaria um caos. Poderiam ser capazes até de perder o Deviace e conseqüentemente, a fonte de renda que nos sustentou durante toda a nossa vida. Eu não quero isso. Mas também me recuso a entregar o meu navio na mão de terceiros, você é o único quem eu confiaria para isso.
Eu já dei um jeito de fazer com que os serviços do CHIFRUDO fossem dispensados durante algumas semanas. Por hora, sugiro a você que não alce âncora. Oliver estará disposto a ajudá-lo a sumir do campo da visão gorda do governo. Tive inclusive, que dispensar os marinheiros que trabalhavam conosco, para não levantar suspeita. Por favor, tenha paciência. Não vá fazer nada sem pensar. Temos que agir com calma (...).- ‘‘Temos’’? - Balbuciou Coonell, atônito. - Que história é essa de temos, capitão?
O marujo parou abruptamente de falar e olhou novamente para a porta. Segundos depois, já corria desembestado para a saída da cidade de Alberta.
- Olá. Serviços da...
- Tá, tá, eu já sei! - Arfou Coonell, parando de frente para a Kafra. - Por um acaso você viu o capitão Genovês passando por aqui?
- Ah, sim. Ele usou o serviço de teletransporte não faz nem cinco minutos.
Coonell olhou-a, boquiaberto. A Kafra pareceu duvidar da sua sanidade mental ao olhá-lo de volta.
- O senhor está bem?
- Para qual cidade ele foi?
- Não posso dizer meu jovem. Faz parte do contrato...
- Ora, vamos! É importante. Eu vou encrencar feio, a vida dele e a minha, se não me disser.
- Não digo. Sinto muito.
Coonell deu ligeiras piscadas de olho.
- Seu... Seu atrevido!
Ao sair da água gelada, o marujo sentou-se em um barril, tirando a camisa branca e a torcendo para secar.
- Eu tenho certeza de que é contra o contrato das Kafras, telarem as pessoas no meio do oceano. Mas não, isso ela pode fazer, né.
A carta úmida em seu bolso estava toda embolada. Coonell a retirou com muito cuidado, mas a tinta havia borrado o papel por inteiro.
- Ah, que ótimo. Maravilha.
E atirou o bolo de papel molhado no mar. O movimento no cais aumentava à medida que o sol ganhava mais altura no horizonte. Coonell virou o rosto para a direita e viu o Deviace ancorado mais a frente. Sorriu.
- Eu tentei capitão. Juro que tentei. Hum; não alçar âncora, não fazer as coisas precipitadamente. Tudo bem, então. Será uma tarefa árdua, mas eu estou disposto a realizá-la com sucesso. Mesmo porque, como o senhor pediu, não cometerei os mesmos erros que você.
Em todos os cantos da cidade portuária, pergaminhos e cartazes exibiam em letras garrafais, a notícia de que Coonell, o marujo, está aplicando testes a qualquer aventureiro com alguma experiência de vida. Para maiores detalhes, um pergaminho distribuído pelas mãos do próprio:
Saudações, aventureiros!
Em busca de experiências arriscadas em lugares desconhecidos? Não? Resposta errada!
Para aqueles que têm interesse em se juntar à minha tripulação e sair à procura de mistérios do oriente, missões empolgantes e tesouros inimagináveis, eu, Coonell, proprietário do Deviace, estarei recrutando novas cabeças para usufruirmos a nobre arte da pirataria bem intencionada nos confins do mundo!
Brincadeira. Serão viagens diplomáticas para as ilhas orientais, a fim de estabelecermos laços mais fortes e conhecermos suas histórias por meio da ajuda mútua com esses lugares fantásticos e pouco conhecidos por nós do grande continente.
Os testes são simples. Qualquer um com uma experiência mínima nos setores comercial ou combatente poderá me encontrar o dia todo perambulando pela cidade de Alberta. Caso não tenha nenhum destes pré-requisitos, mas possui uma vontade incontrolável de fazer algo ousado, me procure do mesmo jeito que vejo o que podemos fazer.
Juntem-se a nós, os Corsários de Aegir!
Seu capitão,
Coonell.